Conheça a história da Companhia que fundou o capitalismo moderno.

Por: Filipe Teixeira

Este artigo usa como fonte o livro: Crash: Uma Breve História da Economia, do autor brasileiro Alexandre Versignassi.

É muito comum em nosso dia a dia de investidor, a procura por notícias, indicadores e cotações de ativos listados na bolsa de valores e mais recentemente, essa busca tem se expandido também para os mercados internacionais, visto que as facilidades tecnológicas têm proporcionado cada vez mais o acesso aos ativos listados nos principais mercados financeiros do mundo.

Conferimos a cotação do petróleo, compartilhamos dados de emprego nos EUA e passamos o dia de olho nos mercados em Wall Street, mas pouco paramos para pensar sobre a origem deste tipo de mercado, tampouco nas primeiras empresas a serem listadas na bolsa.

No artigo de hoje, veremos que o hábito de investir na bolsa é muito mais antigo do que você possa imaginar e que tudo começou em um país que nos dias atuais, passa bem longe dos noticiários do gênero: a Holanda!

O caminho das índias

Para entendermos melhor essa história, é necessário voltar até a idade média, quando os romanos incorporaram à sua dieta o cravo, a canela, a pimenta-do-reino, a noz-moscada e outras especiarias vindas da Ásia.

Em 408 d.C quando os germânicos de origem escandinava (visigodos) sitiaram Roma (capital do Império Romano do Ocidente e àquela altura a principal cidade do mundo), a exigência feita  para que deixassem a cidade de Roma em paz novamente, foi feita através do pagamento de grandes quantidades de ouro, prata e especiarias.

Mesmo após a queda de Roma (70 anos mais tarde) e a invasão turco Otomana à Constantinopla (a versão Oriental do Império Romano que só veio a sucumbir em 1453) que determinou o fim da idade média, o comércio intercontinental de especiarias seguiu firme.

Inflação na pimenta dos outros é refresco

Porém, as coisas começaram a mudar a partir do século 14, quando comerciantes de Veneza firmaram um acordo com o governo egípcio, monopolizando o comércio de especiarias provenientes da Ásia.

O resultado foi óbvio: aumento generalizado dos preços. Uma saca de pimenta chegava a custar o equivalente a seis meses de aluguel no centro de Veneza.

A disparada no preço das especiarias chamou a atenção de Portugal, que no começo do século 15 já havia colonizado os arquipélagos dos Açores e da Ilha da Madeira com suas “modernas” caravelas.

Com o já citado o monopólio instaurado pelos venezianos, a única forma de comprar as especiarias direto da fonte, ou seja, dos indianos, era descer pelo Atlântico, contornar todo o continente africano para só então ingressar no oceano Índico, uma tarefa complexa até os dias atuais, imagine no século 15.

Não contavam com a sua astúcia

Em 1488, Bartolomeu Dias finalmente conseguiu contornar a África, batizando o lugar de “Cabo das Tormentas” (você deve imaginar a razão), futuramente rebatizado pelo rei de Portugal, Dom João II como Cabo da Boa Esperança.

Dez anos depois, Vasco da Gama, já com o caminho das índias conhecido, navegou por 10 meses até finalmente atracar em Calicute, na costa oeste da Índia. O navegador retornaria a Portugal quase dois anos depois, com duas das quatro caravelas que haviam partido e apenas 55 dos seus 170 homens.

Ainda assim, os lucros obtidos foram considerados plenamente satisfatórios pela coroa Portuguesa, ainda que houvesse um pequeno problema: as expedições custavam mais do que a coroa podia pagar. 

Nunca coloque todos os ovos no mesmo navio

O jeito foi recorrer aos primeiros banqueiros da história, entre eles o mais famoso: Bartolomeu Marchionni, florentino radicado em Lisboa, naquela altura com uma fortuna estimada em R$ 500 milhões em dinheiro de hoje.

Além de dono de banco, Marchionni também ganhava a vida traficando marfim, ouro e escravos. Sabe como é: “Nunca coloque todos os ovos no mesmo cesto”.

As primeiras aventuras de Bartolomeu Dias e Vasco da Gama, financiadas com o dinheiro de Marchionni resultaram em um efeito colateral inusitado, porém bastante lucrativo: a descoberta e posse de um território chamado Brasil, que permitiu a Marchionni um novo tipo de “diversificação”, fazendo dele um dos principais comerciantes de pau-brasil na Europa.

Ao longo do século 16, Portugal mandaria outros 705 navios para o Oriente, expandindo o comércio além das já citadas especiarias, incorporando o ópio, a seda e a porcelana chinesa.

Enquanto isso, na Holanda.

Pouco antes disso, a Holanda não passava de um território pantanoso habitado por um pequeno grupo de pescadores, o que fez com que os holandeses desde muito cedo tivessem de se unir para domar as dificuldades impostas pela natureza: há mil anos, 20% do território holandes estava literalmente debaixo d’água.

Quando os portugueses consolidaram seu “modelo de negócios”, estabelecendo um comércio organizado com o outro lado do mundo, os holandeses já haviam aprendido que a união, além de açúcar, também faz a força.

Centenas de represas, canais para drenagem das águas e os famosos moinhos, foram construídos pelo bravo povo holandês, que desenvolveu também um forte comércio, em um tempo onde o resto da Europa ainda adotava o modelo feudal.

Aos poucos, a Holanda se apresentava como um tubo de ensaio para o que futuramente seria conhecido como capitalismo: a pesca e a criação de gado, por exemplo, já eram em boa parte “industrializadas” em 1.500.

Em 1595,  só a cidade de Amsterdã já controlava um volume de comércio maior do que França e Inglaterra juntas (mesmo com um PIB muito inferior).

Porém, o comércio mais lucrativo do mundo àquela altura era dominado pelos portugueses, mas isso estava prestes a mudar.

Isso porque a Holanda já era uma exportadora de marinheiros, muitos deles empregados justamente em caravelas portuguesas.

O jeitinho holandês

Era uma questão de tempo até que os holandeses desvendassem todos os segredos de contornar o cabo da Boa Esperança.

Arnaud de Holanda era um destes marinheiros, tendo participado inclusive de uma viagem portuguesa ao Brasil, onde não apenas fincou residência, como deu origem à Família Buarque de Holanda. Mas o personagem mais importante desta parte da história atende por Jan Huygen Van Linschoten.

Ele passou nove anos navegando em navios lusitanos e ao retornar para a Holanda, lançou um livro que mudaria o destino dos holandeses para sempre: “Relato de uma viagem pelas navegações dos portugueses no Oriente”, lançado em 1596.

O sucesso do livro foi tanto, que em 1.600, já haviam seis empresas holandesas operando navios mercantes para a índia. O livro também chegou à Inglaterra e fez igual ou maior sucesso: a batata dos portugueses começou a assar.

Ainda assim, holandeses e ingleses precisavam ultrapassar um último entrave, tão ou mais difícil do que contornar o continente africano a bordo de um navio: arranjar dinheiro para financiar suas expedições.

Naquela altura, metade das embarcações holandesas enviadas ao Oriente não haviam retornando, um problema que os portugueses já haviam eliminado, o que os favorecia no momento de obter financiamentos privados para custear as expedições.

A solução encontrada parece óbvia para os dias atuais, mas no início do século 17, a iniciativa holandesa simplesmente ajudou a revolucionar não apenas a navegação, como também as relações econômicas: eles resolveram contatar não apenas um ou dois mega investidores, mas centenas deles!

Assim, cada um precisava de apenas um pouco de dinheiro, com a promessa de receber parte dos lucros, caso a “empreitada” se provasse exitosa. Assim, descentralizando a figura do investidor, o negócio deixava de ser um “tudo ou nada” para todos os envolvidos.

A iniciativa partiu do próprio governo holandes (que a esta altura já era uma República), que decidiu unir as seis Companhias das índias existentes naquele momento, nascendo assim a primeira megacorporação da história: a Companhia Holandesa das índias Orientais, uma estatal de capital aberto.

De quebra, a República Holandesa construiu, no centro de Amsterdã, o que viria a ser o primeiro pregão do mundo, onde seus cidadãos poderiam investir seu dinheiro na empresa e receber parte dos lucros futuros.

Apple do século 17

Exatamente 1.143 pessoas participaram do “IPO” da VOC (sigla para Vereenidge Nederlandsche Oostindische Compaigne). Oitenta investidores colocaram mais de R$350 mil em dinheiro de hoje, porém a maioria era formada de pequenos investidores, que aportaram algo em torno de 10% deste valor (R$35 mil).

Somando todos os papéis, a VOC arrecadou cerca de R$ 340 milhões, que passou a ser o valor de mercado da companhia. O PIB da Holanda em 1602 era de R$ 8,5 bilhões, enquanto o PIB global girava em torno de R$ 1,3 trilhão (algo em torno de duas vezes o PIB da cidade de São Paulo nos dias atuais).

Assim, os R$ 340 milhões captados no IPO da Companhia Holandesa das índias Orientais, fez dela a maior empresa do planeta, valendo quase dez vezes mais que sua rival britânica.

Porém, os anos passaram e a VOC não pagou dividendo algum, já que gastou metade de seu capital na construção de 22 navios e a outra metade, para a compra de metais preciosos, utilizados para a troca por especiarias no Oriente.

Foto: Wikipedia

Em seus primeiros anos de operação, a VOC faturou mais saqueando navios espanhóis (a Holanda esteve em Guerra com a Espanha de 1568 a 1648) do que com o prometido comércio, o que fez com que em 1.607, um terço das ações da companhia já tivesse trocado de mãos.

Enquanto uns choram, outros vendem lenços

Porém, os anos seguiram passando e a VOC finalmente começou a decolar, driblando portugueses e espanhóis ao estabelecer postos comerciais em um novo território: a Indonésia.

Você já deve imaginar que os holandeses não dominaram a Indonésia com camisas do Van Basten. Quando chegaram ao arquipélago de Banda, a população estimada era de 15 mil habitantes. Quinze anos depois eram apenas seiscentos.

Qualquer sentimento de compaixão para com os bandaneses ficou pelo caminho, quando a VOC passou finalmente a pagar dividendos a seus acionistas. Em 1622, as ações da Companhia Holandesa das Índias  Orientais já haviam valorizado 300%.

Em 1670, a empresa já tinha 50 mil funcionários, 30 mil soldados e duzentos navios, pagando dividendos de até 40% ao ano.

Ao longo do século 17, a VOC mandaria 1.770 navios para o Oriente, contra apenas 371 de Portugal. Cem anos depois, a diferença ficou ainda mais latente: 2.950 contra 196 dos nossos irmãos de língua portuguesa.

É muito comum você ouvir por aí que no longo prazo, o investimento em ações sempre se justifica. Obviamente, há inúmeros casos que desmentem esta premissa, mas definitivamente não é o caso da Companhia Holandesa das índias Orientais, não apenas a primeira estatal de capital aberto da história, como a empresa que praticamente fundou o capitalismo moderno.

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